Maria João Cunha – Pintavida
Raquel Cardoso – Pintavida; ISPA – APPsyCI
“One Health is an integrated, unifying approach that aims to sustainably balance and optimize the health of people, animals and ecosystems.” (OMS, 2024)
“(…) Entre as coisas que parecem tirar o sentido da vida humana estão não apenas o sofrimento, mas também a morte. Nunca me canso de dizer que os únicos aspetos realmente transitórios da vida são as potencialidades; porém quando são realizadas, transformam-se em realidades; são resgatadas e entregues ao passado, no qual ficam a salvo e resguardadas da transitoriedade. Isto porque no passado nada está irremediavelmente perdido, mas está tudo irrevogavelmente guardado. Sendo assim, a transitoriedade da nossa existência de forma alguma lhe tira o sentido. No entanto ela constitui a nossa responsabilidade, porque tudo depende de nos conscientizarmos das possibilidades essencialmente transitórias. O ser humano está constantemente fazendo uma opção diante da massa de potencialidades presentes; quais delas serão condenadas ao não-ser, e quais serão concretizadas? Qual opção se tornará realidade de uma vez para sempre, imortal “pegada nas areias do tempo”? A todo e qualquer momento a pessoa precisa decidir, para o bem ou para o mal, qual será o monumento de sua existência. (…) Frankl (1988)
(…) A incidência das doenças oncológicas tem vindo a aumentar, em Portugal e no mundo, em parte como consequência do envelhecimento da população, mas também devido a múltiplos determinantes modificáveis (sociais, comportamentais, ambientais, infeciosos, etc.)… (National Cancer Hub PT; NCHP, 2024)

As doenças oncológicas representam um enorme desafio das sociedades atuais. Requerem que se abordem questões delicadas como a vida humana, os custos económicos elevados dos cuidados de saúde ou os desafios inerentes à criação de meios inovadores e mais eficientes para o diagnostico, terapêutica e cuidados das pessoas afetadas. Trata-se de uma doença que introduz exigências e adaptações nas vidas dos próprios, dos seus familiares, das organizações que criam e desenvolvem ambientes de trabalho e das comunidades. Estas exigências, ainda que de diferentes dimensões também impactam os profissionais de saúde e o papel dos decisores em políticas públicas tanto nacionais como internacionais.
O ambiente no qual vivemos, é constituído por um conjunto de sistemas que se relacionam entre si. Neste macro-eco-sistema, temos assistido ao crescimento da poluição atmosférica, de perdas ao nível da biodiversidade, do esgotamento de recursos naturais, que resultam em mudanças ambientais. A multiplicação de catástrofes naturais[1], e todas estas circunstâncias, têm vindo a interferir no modo como os seres vivos se desenvolvem e no condicionamento que isso tem ao nível da sua saúde (Bronfenbrenner & Morris, 2006). Sabemos, hoje, que os tratamentos não sustentáveis dos recursos naturais, juntamente com os fenómenos da globalização, tendem a induzir desequilíbrios ambientais que afetam a saúde de todos os seres vivos. De acordo com os especialistas, as alterações climáticas que se encontram a afetar todas as regiões do mundo[2], parecem estar associados ao aparecimento de doenças.[3] A Conferência das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas (COP26) realizado em Novembro de 2024, é um importante evento que reúne dirigentes de todos os países do mundo com o objetivo de refletirem, debaterem e reduzirem problemas e chegarem a acordo sobre a forma de intensificar ações a nível mundial que possam contribuir para a proteção do planeta e redução dos efeitos da crise climática, que por sua vez cada vez mais se reconhece terem implicações na saúde e bem-estar dos seres vivos. Este ano, a OMS participou neste evento de forma mais abrangente, assumindo a sua preocupação em relação ás alterações climáticas e que se refletem na abordagem de saúde defendida (One Health).
Numa perspetiva cronológica, sabemos que os Determinantes de Saúde que se associam ao surgimento de diversas doenças[4] e que assumem diferentes níveis de expressividade na comunidade mundial. A abordagem One Health, aparece na literatura associada à procura da eficiência na prevenção e controlo da propagação de doenças transmitidas por vetores.
Originalmente mais ligada a doenças infeciosas e de “fácil contágio” como é o caso do Ebola, Zika, Gripe das Aves, e até da COVID, qualquer destas doenças pode e tem vindo a dar origem a situações pandémicas.
O quadro da doença oncológica tem vindo a tornar-se assustadoramente expressivo ao nível mundial com a multiplicação de incidências de novos diagnósticos a uma velocidade acelerada, e índices de mortalidade associada cada vez maiores, aos quais não são alheias causas ambientais, comportamentais e culturais que necessitam de prevenção e controlo. No panorama atual, a doença oncológica está ligada a um conjunto de determinantes de saúde incluindo a transmissão por vetores que abrangem o ecossistema, mas que também podem ser trabalhados na vertente da procura da eficiência, prevenção e controlo.
Muito embora outras doenças tenham ganho destaque em função das epidemias, e situações pandémicas que geraram morbilidades e alta mortalidade, devido aos seus múltiplos impactos, a doença oncológica tem vindo a ser considerada como uma das grandes prioridades ao nível das políticas de saúde. A procura de soluções para a sua mitigação e as adaptações estratégicas desta realidade, partilhada em todo o planeta, tem sido objeto de medidas promovidas por entidades internacionais como a Organização das Nações Unidas (ONU), a União Europeia (UE) ou outras, bem como, objeto da intervenção de organizações não governamentais, que procuram “controlar” a pegada ecológica das mudanças ambientais e o seu impacto ao nível da saúde e do bem-estar dos seres vivos.
Um claro exemplo disso são os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e a sua agenda traçada para 2030, que foi adotada por todos os Estados-Membros das Nações Unidas em 2015. Esta define prioridades e aspirações que procuram mobilizar esforços globais à volta de um conjunto de objetivos e metas comuns. A este propósito a ONU refere que “São 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) que representam um apelo urgente à ação de todos os países – desenvolvidos e em desenvolvimento – para uma parceria global.” (https://ods.pt)
Portugal, enquanto membro das Nações Unidas, também assinou o documento dos ODS. Em 2022, foi publicada pelo SNS -Serviço Nacional de Saúde a sua integração na rede Global Green and Healthy Hospitals (Rede Global de Hospitais Verdes e Saudáveis)[5], numa demonstração do empenho das políticas estratégicas ligadas à saúde em contribuir para a sustentabilidade e a saúde ambiental da população (https://ods.pt, p. 1).
Como tal, torna-se necessário integrar no paradigma da saúde e do bem-estar, esta ideia de saúde abrangente, mais holística, colaborativa, multissetorial e transdisciplinar.
Sendo o One Health “uma abordagem que reconhece a ligação entre pessoas, animais, plantas e o ambiente que as acolhe, com o objetivo de alcançar mais e melhores resultados na área da saúde”, facilmente compreendemos que traduz uma perspetiva da saúde que abrange múltiplas ligações entre seres vivos (microrganismos, animais, ambiente). Todos integram o ecossistema em que vivemos, em contínua interação e interdependência, procurando um estado de equilíbrio.
Este modelo, é cada vez mais reconhecido como relevante pela Organização Mundial de Saúde (OMS)[6] e pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), através do programa One Water, One Health. Em 2010, a celebração de um acordo de colaboração entre a FAO e OMS foi decisivo para a definição de conceitos e marcou um ponto de viragem na sua concretização global (FAO – OIE – WHO, Abril, 2010). Contudo, só no dia 3 de novembro de 2016 é que foi celebrado o primeiro One Health Day (https://www.who.int/news-room/questions-and-answers/item/one-health).
Ao contextualizarmos o cancro na abordagem One Health e, tendo em conta que este não se enquadra nas doenças infectocontagiosas[7], pensamos que esta poderá ser uma abordagem legítima de o pensarmos. Esta doença, pode encontrar-se associada à pegada ambiental e encontra-se neste momento a assumir características pandémicas, que se procura a todo o custo controlar. É possível que o crescimento abrupto de número de novos casos e taxas de mortalidade associadas ao cancro em todo o mundo se possam encontrar ligadas a um vasto conjunto de mudanças que estrategicamente temos de procurar gerir da melhor forma. Por isso, acreditamos ser relevante alargarmos o nosso campo de reflexão e partilharmos algumas das nossas visões sobre esta temática.
Acreditamos ser possível capacitar as pessoas através da literacia em saúde para a luta pelo controlo dos processos associados ao cancro, recorrendo a uma abordagem holística, colaborativa e multidisciplinar que deve ser uma prioridade. Tal como a ECHoS Communication World Cancer referiu no Dia Mundial do Cancro [8], é fundamental unirmos esforços para quebrar barreiras e diminuir o número de novos casos anualmente diagnosticados (cerca de 13 milhões)[9], bem como a mortalidade associada anualmente a esta doença no mundo (cerca de 10 milhões de mortes anuais).
Consideramos que existe uma necessidade premente de focalização no que concerne às disparidades e lacunas na prestação de cuidados, nomeadamente na prevenção, na deteção/diagnóstico precoce, no acesso a tratamentos inovadores com maior potencial de eficiência para cada caso. Pensamos ser essencial unirmos esforços para que, em todo o mundo, haja francas possibilidades de recurso a cuidados de saúde de qualidade. A falta de equidade e os enormes fossos nas oportunidades de vida com qualidade nas diversas regiões do mundo representam vulnerabilidades acrescidas para certas populações e comunidades. Assumimos, por isso, como essencial o delineamento de estratégias que se centram na diminuição do risco, no evitamento do surgimento do aumento de novos casos de cancro e na redução das taxas de mortalidade.
Tem sido preponderante o papel da União Europeia, na produção de orientações estratégicas sobre as metas a atingir para melhorar as políticas públicas relativas ao cancro, especialmente no estímulo à investigação e à inovação. A tentativa de alinhamento de políticas concertadas para a identificação e diminuição de fatores de risco, a promoção e conservação da segurança na dieta alimentar, a exposição a riscos ambientais, físicos, químicos, bem como, o investimento na produção de conhecimento cientifico e a conciliação de meios e recursos para a investigação/ação/inovação, dão-nos esperança de melhorias que garantam melhor saúde para todos, integradas em politicas de prevenção bem estruturadas em que todos somos chamados a cooperar.
Os processos de adaptação à doença e aos tratamentos, são exigentes do ponto de vista biopsicossocial e têm impacto em diversas áreas. Torna-se necessário repensar, reorganizar e alterar todo o ecossistema no qual a pessoa se move. Mas, um dos desafios com que a pessoa com cancro se confronta é o de conseguir encontrar um sentido para viver com a sua situação de saúde e não para ela. Dizendo por outras palavras, sem ignorar tudo o que envolve o processo de adoecer, é possível sermos saudáveis na doença e não vivermos a nossa vida, focalizados apenas na doença. Ou seja, ainda que os tratamentos e cuidados necessários para garantir a maior sobrevida possível, estejam frequentemente associados a circunstâncias de mal-estar e sofrimento, podemos aceitar os desafios da vida, procurando a realização pessoal e desfrutando dos momentos de bem-estar com qualidade de vida.
Sendo o cancro um desafio, a doença não é nunca vivida apenas pelo próprio. Familiares (companheiros, pais, filhos, cuidadores), amigos e as pessoas em redor da pessoa doente vêm-se também envolvidos em todo o processo e passam igualmente por todo um conjunto de emoções e exigências. Não podem, pois, ser ignorados, pois são determinantes para a criação de ecossistemas saudáveis com funções de retroalimentação tanto ao nível da comunicação, como das relações saudáveis e da qualidade de vida.
Neste sentido, os cuidados a todos os envolvidos assumem um caracter preventivo e promotor da saúde e do bem-estar. Servem especialmente, para sustentar o apoio na mobilização da energia, da confiança, e das crenças positivas e, quando a fadiga, a dor emocional, o estado de ânimo e o distress se tornam parte integrante de uma descompensação do sistema pisco- neuro imunológico. Neste âmbito e segundo o pensamento de Frankl (1988), prevenir, a doença será promover a busca do sentido da vida e desenvolver valores atitudinais, experienciais e criativos, que aportam força interior, o desenvolvimento de mecanismos de coping ativo para transformar perdas e dores, em resiliência e crescimento pessoal, tão necessários para responder de forma positiva à situação, aos tratamentos e aos efeitos secundários, facilitando assim, o crescimento pós traumático.
O Programa Nacional para as Doenças Oncológicas (PNDO), a Direção Geral de Saúde (DGS) a Agência de Investigação Clínica e Inovação Biomédica (AICIB), seguem Políticas de Investigação e de Saúde da Comissão Europeia (CE). Esta ultima lançou duas grandes iniciativas estratégicas: o Plano Europeu de Combate ao Cancro (EBCP) e a Missão Cancro que, para além de assumirem um compromisso com base no desenvolvimento de estratégias politicas e inovadoras no sentido de tornar as populações dos países e da Europa, mais fortes, seguras, preparadas e resilientes, procuram controlar e inverter a subida do números de casos diagnosticados anualmente e da mortalidade a eles associada. [10]
O que podemos então fazer de modo que possamos contribuir para um mundo com mais e melhor saúde, e sobretudo ao nível da oncologia?
No nosso entender, devem ser desenvolvidos e implementados programas de literacia em saúde que sejam ajustáveis à população a que se destinam:
- Para a população mais jovem (crianças e jovens);
- Para os contextos laborais, nomeadamente que as organizações integrem planos de segurança e saúde para todos os colaboradores;
- Junto da população idosa, promovendo o acesso e a adesão a sessões de promoção da saúde nas quais se tenha em consideração a importância da integração psicossocial das pessoas
- Com grupos específicos de risco, através de abordagens educacionais que promovam a adesão a estilos de vida saudáveis e comportamentos promotores da qualidade de vida e do bem-estar.
Um dos primeiros desafios da abordagem One Health no âmbito da doença oncológica, terá de passar, pela capacitação das pessoas com recurso à literacia em saúde, através do desenvolvimento de atividades de sensibilização e divulgação que se vem manifestando como preponderante na adaptação das pessoas, grupos e comunidades.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
Agenda 2030 – Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). https://ods.pt retirado a 16/03/2022
Bronfenbrenner, U., & Morris, P. A. (2006). The Bioecological Model of Human Development. En R. M. Lerner & W. Damon (Eds.), Handbook of child psychology: Theoretical models of human development (pp. 793–828). John Wiley & Sons, Inc.
Consequências das alterações climáticas https://climate.ec.europa.eu/climate-change/consequences-climate-change_pt consultado 16/03/2024
FAO – OIE – WHO (2010). A Tripartite Concept Note. Sharing responsibilities and coordinating global activities to address health risks at the animal-human-ecosystems interfaces.
Frank, V.E. (1988). El hombre en busca de sentido (9’ cd.). Barcelona: Herder.
Gilstrap, L. & Zierten, E. (2023). Urie Bronfenbrenner. Encyclopedia Britannica. Consultado el 15 de junio de 23.
Navarro, J., & Tudge, J. (2022). Technologizing Bronfenbrenner: Neo-ecological Theory. Current Psychology. 1-17. doi: 10.1007/s12144-022-02738-3. Epub ahead of print. PMID: 35095241; PMCID: PMC8782219.
National Cancer Hub PT; NCHP, (2024). https://aicib.pt/wpcontent/uploads/2024/01/Regulamento_Projetos-AICIB_DGS-em-cancro_vf.pdf )
OECD/European Union (2022) Health at a Glance: Europe 2022 https://health.ec.europa.eu/document/download/3f9d55be-9e36-43d9-99ad-b96ac63a5b9b_pt?filename=2022_healthatglance_rep_en_0.pdf
OMS (2024) https://www.who.int/health-topics/one-health#tab=tab_1 (retirado a 27/03/2024)
Plano Europeu de Combate ao Cancro (EBCP). https://commission.europa.eu/strategy-and-policy/priorities-2019-2024/promoting-our-european-way-life/european-health-union/cancer-plan-europe_pt
Programa Nacional para as Doenças Oncológicas (PNDO) https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/despacho/13227-2023-835712442 (retirado a 16/03/2024
SNS Serviço Nacional de Saúde (2022). ACSS adere à rede Global Green and Healthy Hospitals; https://www.sns.gov.pt/noticias/2022/12/28/reducao-da-pegada-ecologica https://ods.pt/ (retirado a 10- 03-2024).
https://www.consilium.europa.eu/pt/policies/paris-agreement-climate/cop26/ (retirado a 17-11-2024)
[1] Incêndios florestais, secas, inundações, terramotos, insolações, etc.
[2] (https://climate.ec.europa.eu/climate-change/consequences-climate-change_pt)
[3] Muitas das quais crónicas, que têm vindo a aumentar também em consonância com o aumento da esperança de vida.
[4] Neste contexto, destacam-se as doenças infeciosas, as orgânicas e sistémicas, as cardiovasculares e cerebrovasculares, bem como a doença mental , e também a doença oncológica.
[5] que se dedicada a reduzir a pegada ecológica e a promover uma maior sustentabilidade e saúde ambiental, a nível global
[6] que tem vindo a chamar a atenção para estes aspetos, nomeadamente para a garantia da segurança alimentar, combate a zoonoses e resistência a antibióticos
[7] Muito embora o desenvolvimento de alguns tipos de cancro possam ter por origem um vírus (como é o caso do Human papillomavirus (HPV), da Helicobacter pylori, do Hepatitis B virus, Hepatitis C virus, e do Epstein-Barr vírus.
[8] A 4 de Fevereiro de 2024
[9] Não estando contabilizadas aqui as mortes nem diagnósticos de animais que também eles desenvolvem patologias do foro oncológico.
[10] Para o efeito, foram abertas possibilidade e viabilidade dos países membros de:
– alargar e melhorar os rastreios que já vão efetuando, aa novos grupos alvo e mais tipos de cancro.
– melhorar a deteção precoce do cancro,
– criar melhores condições de igualdade e de acesso a cuidados de saúde, diagnóstico e tratamentos,
– melhoria da qualidade de vida das pessoas doentes e sobreviventes do cancro
Por outro lado, têm vindo a ser abertos diversos programas de financiamento para a investigação e inovação. para a deteção precoce, o desenvolvimento de terapias e cuidados, estimulando dessa forma a investigação em prole do desenvolvimento e inovação.



Adicionar Comentário